sábado, janeiro 01, 2011

Por que a banana não tem caroço?

Essa é uma das perguntas mais mal respondidas na história da humanidade. Já vi um bilião de respostas, algumas que tangenciam a resposta, mas em geral perdem-se em detalhes sobre o que é ou o que não é caroço. Assim como a explicação de porque o céu é azul, a resposta completa não é exactamente trivial, mas ela existe. Só que já que até isso está a ser usado por criacionistas para tentar provar que o Universo foi criado há 6000 anos; então eu acho que vale a pena colocar isso de forma mais clara na blogosfera.
Quando eu era pequeno, a primeira coisa que eu me perguntei quando constatei que as bananas não tinham caroços foi "como é que nasce uma bananeira então?". Minha mãe, sábia e paciente, explicou que para fazer uma bananeira nova, é preciso pegar um pedaço da bananeira e enterrar. Mais para a frente, durante as longuíssimas aulas de botânica, entre os vários aborrecimentos, eu fiquei sabendo que a parte de fora da superfície da bananeira é um pseudo-caule. Na realidade são folhas. E que o processo que minha mãe me explicou se chamava propagação vegetativa, um processo de reprodução assexuada. Isso elimina a necessidade das sementes para a reprodução das bananeiras. Mas não responde algumas questões. O que são os pontos pretos na banana? Se a banana não tem semente, porque a bananeira produz a fruta, uma fruta tão cheia de nutrientes, diga-se de passagem? E, mais importante, como é que surgiu a primeira bananeira? Agora eu peço paciência porque aparentemente vamos fugir do assunto. Mas já, já, eu chego à banana. Antes, vamos nos voltar para a genética.
As células eucarióticas de quase todos os seres vivos possuem cromossomas e os cromossomas dentro de uma espécie não variam muito. Por exemplo, o homem tem 23 pares de cromossomas nas suas células. Isso significa que nós temos 2 cópias de cada tipo de cromossoma. [Na realidade somente as mulheres tem 23 pares de cromossomas; os homens tem 22 pares de cromossomas, além do XY... mas vamos assumir que X e Y são idênticos para esse texto aqui!] Células que têm cromossomas aos pares são chamadas diplóides. Já o fungo que fabrica o nosso pão, o Saccharomyces cerevisae tem 16 cromossomas distintos. E sem repetição. Eles são, por isso, chamados haplóides. Os geneticistas, para colocar a informação sobre o número de cromossomas e o pareamento criaram uma notação compacta e bastante prática. O homem por exemplo tem 2n=46 cromossomas enquanto que a levedura da cerveja tem n=16 na sua célula. Essa é uma notação bastante útil. Pois é fácil sabermos rapidamente que o gâmeta humano tem n=23 cromossomas e que o corpo esporulento da levedura terá 2n=32 cromossomas.
As várias anomalias genéticas podem, grosseiramente ser dividas em dois tipos: alterações que ocorrem dentro do cromossoma e alterações que ocorrem em cromossomas inteiros. E dentro das alterações do último tipo existem ainda dois tipos de aberrações: aneuploidias, que ocorrem quando a célula tem cópias ou delecções de um ou alguns cromossomas e euploidias, que ocorrem quando a célula tem cópias de conjuntos inteiros de cromossomas. Voltando para o nosso exemplo humano. Um indivíduo que tem síndrome de Down, por exemplo, tem uma cópia extra do cromossoma 21; o número de cromossomas dessa pessoa passa a ser 2n=46+1. Isso é uma aneuploidia.
Mas só nos interessa aqui as euplodias. Euploidias ocorrem quando a meiose dá errado. Se vocês se lembrarem, uma meiose bem sucedida ocorre quando uma célula diplóide gera quatro células haplóides e esse processo ocorre através de uma duplicação e duas segregações, como no esquema abaixo.

Acontece que às vezes, o processo não funciona perfeitamente durante um passo de segregação e a meiose pode gerar células diplóides:

Ocorre que a meiose é exactamente o processo envolvido na geração de gâmetas (espermatozóide, óvulo, oócitos, pólen), e a prole é gerada através da fusão de dois gâmetas. Quando dois gâmetas haplóides se fundem, temos um filho diplóide. Mas quando um gâmeta defeituoso diplóide se funde a um gâmeta haplóide, temos uma célula 3n! Esse tipo de processo pode acontecer com várias combinações possíveis formando células com tipos de euploidias diferentes. Podemos ter células 3n, 4n, 5n,... Esse fenómeno se chama poliploidia.
Em animais, poliploidias costumam ser fatais e um embrião nem sequer é formado, mas em plantas isso é bastante comum, como vemos no gráfico extraído do excelente livro Introduction to Genetic Analysis. Inclusive, plantas poliplóides costumam ser maiores do que as diplóides normais e portanto, costumam ser preferidas pelos agricultores.

Note no gráfico que as plantas com número de euploidia par formam picos enquanto que plantas de euploidia ímpar formam vales. Isso é uma evidência de que "plantas pares" tem alguma vantagem reprodutiva em relação a "plantas ímpares". E isso tem a ver com o processo de meiose. A meiose numa célula "ímpar-plóide" costuma gerar gâmetas que sofrem de aneuploidia por causa da incapacidade de pareamento durante o processo de alinhamento de cromossomas na meiose. E aneuploidias costumam ser bastante destrutivas para os organismos porque ela mexe com o que os geneticistas chamam de balanço génico (gene balance). Então organismos "ímpar-plóides" geram gâmetas estéreis.
E é por isso, meus amigos, que a banana não tem caroço. Porque a banana que cultivamos hoje em dia é uma versão "ímpar-plóide" da banana original - mais precisamente triplóide. Aliás, é assim que agricultores produzem versões sem sementes de frutas como uvas, melões e melancias. Mas quer dizer então que se uma banana não for triplóide, ela teria caroços? Sim. E é isso que a primeira figura lá em cima mostra. Uma banana diplóide. E cheia de caroços.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado amigo! Pode apagar esta mensagem se quiser. Enviei só para informar que, provavelmente, quis escrever "bilhão" em vez de "bilião". Abraço!

Gustavo B. disse...

Sucinto. Muito bem explicado.
Grato!

Anónimo disse...

Por acaso, em português de Portugal, bilião é a palavra correta

Valéria Aparecida Bari disse...

Boa tarde, procurei por esta resposta hoje e me deparei com este artigo fantástico. Fiz Ciências Biológicas no nível médio, e tive noções de genética muito boas, com os recursos disponíveis na década de 1980. Lembrei-me dos experimentos do Mendell, mas eu creio que, naquele caso, as ervilhas eram diplóides, certo? Não sabia, juro, que a alteração da carga genética eliminava os caroços das frutas. Além de matar minha curiosidade, também me deixou mais despreocupada, em relação àquelas estranhas frutas sem caroço... Abraços e tenha um excelente 2024.